Leia na integra o texto que relata a viagem que Daniel Pizza fez pelos caminhos que Euclides da Cunha realizou em 1905.
“Não desejo Europa, boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a picada malgradada, e a vida afanosa e triste de pioneiro” (Euclides)
A Amazônia que ocupa as margens do Alto Purus, no Acre, quase não foi tocada pelo homem. De suas matas e espécies nativas, muitas ainda nem sequer foram batizadas. A distância, ali, é medida pelo tempo: um lugar está a tantas horas de barco do outro, ou a tantos dias. O rio desce tão sinuosamente que um ponto que se avista a cem metros adiante só será atingido mais de meia hora depois, assim que se percorrer toda a volta. Pela corrente vêm galhos e até troncos de árvores, não porque derrubadas pelo homem, mas porque tiradas pelas águas caudalosas e barrentas de suas cheias. Paisagens parecem se repetir, como uma curva à direita com imbaúbas e uma pequena praia de barro, dando a impressão de que nada mudou. Índios e caboclos surgem a intervalos, em pequenos povoados onde levam sua vida de subsistência: plantar, caçar, pescar. Ou em canoas com motorzinhos de rabeira e carregadas de macaxeiras e jabutis. Mesmo a flora e a fauna, com exceção das mais triviais garças e andorinhas, se exibem eventualmente, em meio ao silêncio e à aparente monotonia da subida. O que é outono e inverno em outros lugares, ali se chama verão; o inverno, de novembro a abril, é a época do calor e das chuvas, de tal umidade que as noites esfriam e produzem uma cerração que, ao baixar, deixa um orvalho sobre a grama que mais parece resultado de chuva. É como um deserto pluvial.
Foi essa Amazônia que o escritor Euclides da Cunha (1866-1909) viu em 1905: como a natureza flagrada logo depois do Gênesis. Nesse labirinto a vapor, sem pedras nem estradas, sem nomes nem cidades, ele viu o que chamou de “um paraíso perdido”, ecoando a expressão do poeta cristão John Milton (Paradise Lost). Planejou escrever sobre ele um grande livro sob esse título – livro que dizia que seria superior ao clássico Os Sertões (1902), o livro de sua juventude, de estilo “bárbaro”, produto das reportagens feitas para O Estado de S.Paulo durante a Guerra de Canudos. Oito anos depois de sua incursão no semiárido baiano, onde testemunhou as crueldades e os equívocos do Exército republicano contra a seita monarquista de Antonio Conselheiro, Euclides, ansioso pelos vazios do território, decidiu partir para o Acre.
Formado em engenharia pela Escola Militar da Praia Vermelha, incubadora do positivismo nacional, Euclides viajou sob as ordens do Barão do Rio Branco, o chanceler que tratou de demarcar as dimensões continentais do Brasil. O Acre, com seus contenciosos com Bolívia e Peru, era o último bastião desse processo. A função de Euclides, em parceria com uma comissão peruana, era conferir o traçado hidrográfico do Purus, feito 40 anos antes pelo explorador inglês William Chandless, esclarecer dúvidas a respeito de sua bacia e nascente e assinar um acordo com o país vizinho. A tarefa, que comprovou o mapeamento de Chandless, foi realizada com muito custo. Mas para Euclides, que sonhava ir para lá desde 1903, o mais importante era conhecer profundamente o Brasil e desvendar em sua mente aquela “terra sem história”.
Treinada em diversas disciplinas, a começar pela geologia, a mente de Euclides estava repleta de leituras sobre expedições amazônicas, principalmente de autores como Alexander Humboldt, Von Martius, Henry Bates e Alfred Russell Wallace (codescobridor da evolução das espécies), além do próprio Chandless. Tais relatos não eram apenas científicos; todos continham uma sensação de espanto e maravilhamento, quase de perturbação emocional diante da grandeza e das contradições da Amazônia. Com Euclides não foi diferente. No livro póstumo À Margem da História, seus textos sobre a região foram reunidos, com destaque para o relato do que viu no Alto Purus. “(A Amazônia) é, sem dúvida, o maior quadro da Terra; porém chatamente rebatido num plano horizontal que mal alevantam de uma banda, à feição de restos de uma enorme moldura que se quebrou.” E “o homem, ali, é ainda um intruso impertinente”. Entre admirado e pessimista, Euclides voltou diferente de lá.
Se a Canudos chegou disposto a mostrar o atraso moral de um bando de fanáticos e de lá saiu decidido a vingar os fortes sertanejos pela maneira ignorante como foram tratados, ao Alto Purus ele chegou inspirado a encontrar uma riqueza natural a ser colhida pela nação e de lá saiu desconsolado com a paradisíaca monotonia de uma região onde só existia o trabalho semiescravo dos seringueiros. “A adaptação exercita-se pelo nomadismo”, escreveu, como leitor da biologia de seu tempo. “Daí, em grande parte, a paralisia completa das gentes que ali vagam, há três séculos, numa agitação tumultuária e estéril.” Com sua mistura de determinismo (o homem é produto do meio) e idealismo (“um serviço organizado de melhoramentos que nos salve o majestoso rio”), de prosa científica e expressões bíblicas, Euclides igualou sua obra-prima em pelo menos um aspecto: as questões estão todas ali, lançadas por seu estilo único, por mais que discordemos de suas soluções.
Hoje, porém, o Alto Purus mudou. Se continua com o mesmo ar de abandono, desabitado e desconhecido, de acesso e permanência difíceis, por outro lado tem nova paisagem humana, com cidades pequenas e uma ponte a caminho. Foi para mostrar semelhanças e diferenças do que Euclides viu, neste ano em que se comemora seu centenário de morte, que o Grupo Estado refez boa parte de sua viagem.
Depois dos seringais
“De feito, o seringueiro é o homem que trabalha para escravizar-se.” A definição contundente de Euclides da Cunha, depois de sua viagem de 1905 pelo rio Purus, hoje não encontra eco nos grandes espaços naturais às suas margens. O seringueiro já não está presente no trajeto. Os que encontramos estão aposentados há mais de dez anos, e seus filhos e netos não vivem da borracha, mas da agricultura de pequeno porte; ou então, sobretudo no caso das mulheres, partiram para cidades como Manoel Urbano, Sena Madureira e Rio Branco. O sonho euclidiano de ver o látex brasileiro esticar o progresso até o Acre, com outro regime de trabalho e outra mentalidade de produção, não se realizou.
Euclides tampouco viu as cidades que vimos. Partimos do porto de Sena Madureira, que já tem 40 mil habitantes e fica à beira do rio Iaco, e uma hora depois já navegávamos no Purus. Ali o rio traça uma ampla curva por dentro do território do Amazonas, antes de retornar ao Acre à altura de Manoel Urbano, cidadezinha de 7 mil habitantes batizada – assim como o batelão em que Euclides viajou – com o nome de um dos desbravadores do estado. Ela vive do comércio feito principalmente por rio, mas o asfaltamento da BR 364 – a rodovia transacreana que Euclides já defendia – tende a ampliá-la quando estiver concluído nos próximos dois anos.
O comércio de produtos agrícolas para cima de Manoel Urbano, onde começa propriamente o Alto Purus, ainda é muito tímido. O domínio administrativo do município, para ter uma ideia, se estende até a foz do rio Chandless, cerca de 300 km acima, onde começa o domínio de Santa Rosa do Purus, cidade de 4 mil habitantes na fronteira com o Peru, outros 300 km acima. No trecho que vai até o Chandless, os ribeirinhos do Purus são na maioria caboclos que um dia viveram da seringa e hoje cultivam arroz, mandioca, milho, eventualmente gado e frutas como a banana para sobreviver – e vender o pequeno excedente.
É o que fazem os ribeirinhos próximos de uma localidade chamada Silêncio de Cima, antes ainda de Manoel Urbano. Com dificuldade para saber os nomes dos filhos ou responder se estão no no Amazonas (o correto) ou no Acre, eles vivem isolados quase o tempo todo. Comem carnes de caça (cotias, tatus, pacas, jabutis) e de criação (galinhas, porcos), peixes (mandi), frutas (como a cajarana que nos ofertam), de vez em quando compram carne de boi do vizinho. Logo que chegamos, Miguel Dias da Silva exibe a pele esticada de um maracajá, um gato selvagem que havia sido morto pelo cão perdigueiro no dia anterior. Eles exibem também um pequeno televisor, que acessam por parabólica com energia solar, equipamento que lhes custou cerca de R$ 1.000. Um dos familiares está anêmico e perdeu o movimento de um dos braços, mas não foi ao médico diagnosticar se teve um derrame ou algo semelhante.
Um pouco adiante, em Boa Vista, encontramos uma moça sozinha, Eliene da Costa, 26 anos. O marido foi comprar mantimentos em Sena Madureira e só volta dali a alguns dias. Eles vieram de Rondônia há seis meses, depois do casamento, para viver próximo do cunhado de Eliene. Ela diz que o apelido do marido é Ramón, mas não sabe informar seu nome verdadeiro. Conta que tem dois filhos de outro casamento, de 8 e 2 anos. “Choro de saudade dos meus meninos.” O milho é sua principal alimentação e serve para trocar por roupas e outras comidas. Eliene conta que gostaria de estudar na escola ao lado, em São Salvador, mas que o marido não deixa. “Tenho arrependimento. Mas ele diz: ‘Pra que você casou, se quer estudar?’” Ela não sabe ler nem o próprio nome.
Em São Salvador, vila com nove famílias e um pouco mais de infraestrutura (que inclui uma calha de telhas pela qual a água da chuva desemboca numa garrafa de refrigerante, improvisada como coletor, e é usada no banheiro externo), vimos outra cena inexistente nos tempos de Euclides: um culto evangélico. Na pequena igreja de madeira e palha, Jocinete Brandão de Oliveira, 33 anos, 5 filhos, comanda as orações do dia, entre gritos de “Obrigado, Jesus!”. Ela foi indicada pelo pastor, que vive em outro povoado, Cachoeirinha, e só faz visitas mensais.
O pai de Jocinete, Carlos de Oliveira Filho, o “seu Carlito”, de 78 anos, é o único que se lembra de quando tudo isto foi um seringal com centenas de trabalhadores. Durante 45 anos esse filho de português com cearense cortou seringa, como diz, “oito dias por semana” (seis dias e duas noites), perdendo ali a mocidade “sem forró no fim de semana”. Sorridente e proseador, com o rosto que parece talhado debaixo de um chapéu panamá, medalhinhas de santos ao peito semiaberto, cicatriz feita em seu braço pela queda de uma taboca (bambu com espinhos), Carlito mostra sua foto como um sisudo soldado da borracha, título que lhe vale a aposentadoria de R$ 800 que recebe do Funrural.
Conta histórias como a da lenda do mapinguari, um homem de um olho com umbigo de fora e “pés de pilão” que assustaria as pessoas na floresta; e a do matador Cariri, que tinha “corpo fechado” em que bala não entrava, nem mesmo as do coronel José Ferreira, visitado por Euclides em 1905. Diz que o rio tinha muito tambaqui e pirarara, mas hoje raramente tem. Sobre os filhos, afirma que teve 14, ao que a esposa, Antonia, acrescenta: “Comigo foram 14, com outras por aí não sei não.” Carlito dá uma risada e desabafa: “Eu não sei como é lá com vocês. Mas aqui a mulher é que governa o homem. A mulher todo mundo quer, porque homem não tem moral. Toda morte matada é por causa de mulher. E hoje ela tem mais dinheiro que o homem.” Ele se refere ao Bolsa Família.
Carlito tem um jeito bem-humorado de se autodepreciar. “Nunca fiz nada que prestasse. Todo objeto que compro tem defeito. Todo negócio que faço dá prejuízo. Se vendo fiado, não recebo. Mas para mim tá bom, e nunca fiquei endividado.” Ele também afirma que nunca foi valente nem bonito e que tirava um quarto do leite da seringa que os outros tiravam. “Todo mundo quando fica velho diz que foi isso, foi aquilo.” Alguns filhos e netos moram em cidades como Rio Branco e Santa Rosa do Purus, mas Carlito não quis fazer como os outros seringueiros e ir embora. “Na cidade moram escondido. Aqui eu tenho essa sala para fora”, explica, apontando para a varanda que dá visão para o Purus, característica comum de todas as casas ribeirinhas.
Quando a conversa envereda para religião, Carlito, o único da vila que não se converteu à Igreja Assembleia de Deus, não mostra menos convicção. “Deus não precisa de mim para nada; eu é que preciso dele a toda hora e todo instante. Ele fez esse mundo, não precisa de mim.” Perguntado se acredita que o homem tem a mesma ascendência que o macaco, ele diz achar que sim, mas dona Antonia o interrompe: “Vixe, e alguém já viu macaco se transformando em homem?”
Depois de pernoitar no barco estacionado no porto de Manoel Urbano, em cuja prefeitura enfim tivemos acesso a telefone e internet, seguimos rio acima. Em pouco tempo passamos por Paysandu, onde se veem as obras da BR 364, num trecho que deverá ter até 2010 uma ponte de 400 metros – a primeira ponte jamais feita sobre o Alto Purus. Outra parada feita também por Euclides é em Liberdade, onde encontramos uma família, a Dias da Silva, que também vive de plantações e alguns bois. Os seis filhos de Antonio, 32 anos, pelos quais a mãe recebe R$ 120 do Bolsa Família, estudam apenas alguns meses por ano; apenas os dois mais velhos, Andrelino, 11 anos, e Juscelino, 10 anos, sabem escrever o nome. No bolso, eles carregam arroz quase cru, do qual de tempos em tempos apanham um punhado e levam à boca.
Mais um pouco estamos em São João e vemos uma cena que diz muito sobre o modo de vida dos ribeirinhos do Purus: quatro adolescentes às voltas com a tarefa de colocar um boi numa canoa para vender em outro ponto do rio. Um deles o segura pelo rabo, mas o boi dá um coice e sai correndo, despencando pelo barranco até a beira do Purus, onde um rapaz pula na água e outro sobe na árvore para escapar do choque. Eles não desistem e conseguem derrubar o já ofegante boi, que cai deitado sobre a canoa; cada um o segura por um lado enquanto o mais velho amarra suas patas – e eles partem triunfantes.
Lá no alto, o avô, José Dimas de Melo, o “seu Deco”, 80 anos, orientava os meninos. Ele é mais um seringueiro aposentado, mas com melhores lembranças dos seringais que as de Carlito. Na casa decorada pela nora com recortes de revistas, bandeirinhas coloridas, cartazetes políticos e santinhos, seu Deco conta que já matou “muita onça” e que gostava do seringal, mesmo que acordasse às 2 horas da madrugada todos os dias. “Pelo menos a gente trabalhava na sombra.” A lida com o plantio e algumas cabeças de gado também é dura. E é debaixo do sol amazônico – ou da chuva quase diária. A natureza da Amazônia, “adversária do homem”, segundo Euclides, não dá trégua.
Doze horas mais tarde, em Santo Antônio, ouvimos de Elói Marques Alves, 49 anos, um filho de peruano que veio do rio Chandless, onde cortou seringa durante seis anos, opinião oposta: “Prefiro agricultura, que já dá de comer.” A farinha d’água, feita com macaxeira (mandioca) fermentada numa canoa, é sua principal fonte de renda. Presenciamos então outra cena forte, embora corriqueira neste pedaço da Amazônia. O filho de Elói, de 14 anos, pega um jabuti, vira-o de casco para baixo, apanha um facão e bate com força em suas fendas laterais. Arranca então o casco, como se fosse uma tampa de lata, e corta fora as tripas do animal, reservando a carne do fundo para defumar e comer. Separa o coração e o deixa pulsando em cima do banco.
A descrição da subida pode parecer mais movimentada do que de fato é. Quilômetros de rio cercado por uma mata sem grandes variações de tamanho e cor, ou cerca de 30 minutos, se passam sem que se veja um povoado sequer. De vez em quando uma canoa ou bote com motor de rabeira, geralmente comprado usado por R$ 300, passa com alguma família de caboclos que pescam ou procuram jabutis, veados, calangos e siris à margem. Imbaúbas, canaranas, mulateiros e, menos, samaúmas são as árvores recorrentes. De vez em quando alguém grita “Boto, boto!”, que em geral se vê num rápido salto ou borrifo, exibindo o dorso cinza para câmeras que na maioria das vezes não os conseguem captar. Araras, harpias e macacos aparecem, mas o mais frequente mesmo são garças e andorinhas. E, claro, os piuns – mosquitos parecidos com muriçocas que podem fazer um estrago na vítima desprotegida, legando até duas semanas de coceira.
“Não se vê a Amazônia com mentalidade de TV”, diz Paolino Baltassari, de 73 anos, um missionário que veio de Bolonha, na Itália, estudou teologia em São Paulo e há 40 anos atua nos rios do Acre como uma mistura de médico, padre e político, capaz até de mandar fechar motel em Sena Madureira. Com 82 malárias no currículo, hoje mais preocupado com a dengue, padre Paolino diz que acompanhou o fim do ciclo da borracha, a qual “nunca trouxe progresso para o Acre”, e viu a pobreza se alastrando principalmente a partir dos anos 90, quando a Malásia tomou o lugar do Brasil como exportador mundial de látex. É nesse mundo pós-borracha que o Purus segue, sem vocação clara, tão abandonado quanto Euclides o encontrou. E ao mesmo tempo tão diferente.
Nas aldeias do Alto Purus
A partir da metade do trecho acreano do rio Purus, à altura do rio Chandless, a paisagem humana muda: as famílias de ex-seringueiros dão lugar às aldeias de índios de duas etnias, a kaxinawá e a kulina. O rio segue com as mesmas dimensões e velocidade; as aldeias, assim como as vilas, surgem a intervalos de quinze a trinta minutos, normalmente no alto de barrancos à margem, em cima dos quais se tem uma vista tira-fôlego dos estirões (trechos retilíneos) do Purus. Canoas, voadeiras (botes a motor abertos) e batelões (cobertos) ficam estacionados na base enlameada do barranco raramente com degraus.
Curiosamente, os índios e os ex-seringueiros sobrevivem de maneira muito parecida. Plantações de mandioca, milho e arroz são as mais comuns, e não é difícil encontrar algumas cabeças de gado. Jabutis ficam amarrados em galhos de árvore, o futebol é jogado em gramados muitas vezes com traves, o número de crianças é muito maior que o de adultos, as malocas têm o mesmo tipo de telhado de palha caprichosamente trançada. E, tal como os vizinhos “brancos”, muitos deles chegaram a cortar seringa em décadas passadas, embora em geral fossem discriminados como preguiçosos.
A primeira aldeia que visitamos é a Santo Amaro, na forquilha do Purus com o Chandless, de etnia kulina. Dali até a fronteira, em Santa Rosa do Purus, há quase trinta aldeias, na maioria kaxinawá. Os kulinas são considerados mais ariscos, menos aculturados que os kaxinawás, dos quais vemos indivíduos cursando faculdades ou fazendo carreira política. Talvez por isso, entre os kulinas há mais problemas de saúde, como o alcoolismo. Em Santo Amaro, porém, não notamos essas diferenças. Eles se mostraram felizes; como sempre, ficaram curiosos com as câmeras; depois cantaram para os visitantes.
Ali como nas aldeias acima, é comum ouvir pedidos. O mais comum, vindo sobretudo de mães adolescentes com bebês suspensos ao lado do corpo com ajuda de um pano ou toalha na diagonal, é: “Tem bolacha? Me dá bolacha!” Os adultos costumam pedir combustível para o motor do barco, até para que possam ir ao Projeto Cidadão, que acontecerá no dia seguinte em outra aldeia. As crianças, mais uma vez, nos oferecem frutas ou amendoim, além de vender pulseiras, colares e tiaras de miçangas coloridas. Quando partimos, vemos alguns botos cinzas à cata de peixes na boca do Chandless.
No fim da tarde chegamos à Nova Aliança, aldeia kaxinawá com cerca de 150 habitantes, onde será realizado o mutirão por dois dias, usando como sede a escola local, uma casa de madeira com duas salas e uma varanda. Ao longo do dia seguinte, índios de diversas aldeias – como Novo Recreio, Fronteira, Fortaleza, Novo Lugar e a própria Santo Amaro –, algumas a até 4 horas de distância, vão chegando em filas. “Oi, txai” (oi, amigo, na língua kaxinawá, chamada de hatxa kuí) é o cumprimento que imediatamente se universaliza. Nós, os brancos, somos os “kariús”. Homens de cocar, uma menina com um macaco soim (espécie de sagui) na cabeça, bebês dormindo em cima de folhas de bananeira sobre o gramado – as cenas se sucedem. A nosso pedido, ouvimos o mariri, canto típico dos kaxinawás.
Famílias que somam quase 40 pessoas aparecem em busca de RG, CPF, título de eleitor, carteira de trabalho, certidão de nascimento e de casamento. Filas se formam para tirar fotos e depois preencher os formulários com ajuda de servidores do Ministério do Trabalho, do Incra, dos Correios e do cartório de Santa Rosa do Purus. Entre eles, está um dos filhos de Chico Mendes, Sandino, representando o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O coordenador do projeto, José Ferreira Neto, o “Loiro”, um ex-sindicalista de 47 anos, informa o resultado final: foram 350 RGs, quase 1.500 documentos ao todo. Na aldeia Novo Marinho, quatro dias depois, mais 152 pessoas foram atendidas.
Aos 14 anos, o projeto ajudou a derrubar o número de pessoas sem registro no Acre de 68% da população para 11%. Uma delas é Aristodis Kuerino Bardero Kaxinawá, de 62 anos, que veio caminhando da aldeia vizinha Nova Fronteira. Ele exibe satisfeito uma folha em branco dentro de uma pasta em que se lê CERTIDÃO DE NASCIMENTO. É o primeiro documento de sua vida. Ele também acabou de tirar RG e título de eleitor, que, por precisarem das fotos, serão entregues mais tarde. Ele também queria pedir aposentadoria, mas o INSS exige que se vá até a cidade. Outras procuras que não podem ser atendidas são as das mulheres por auxílio-maternidade e Bolsa Família, programas oficiais que sustentam e multiplicam as centenas de índios da região. Elas também são orientadas a ir até Santa Rosa do Purus.
Há cerca de 7 mil kaxinawás no Acre, quase 70% deles concentrados no Rio Tarauacá, ao norte. Foi de lá que muitos dos habitantes do Alto Purus vieram. Ao tempo da viagem de Euclides da Cunha, em 1905, eles não moravam aqui. Estavam “no centro”, como diz o padre Paolino; ficavam na mata, distantes dos rios, porque na grande maioria haviam sido expulsos por bandeirantes em tempos mais remotos e por seringueiros um século atrás. Daqui para cima, Euclides viu a tensão entre os seringueiros brasileiros e seus rivais peruanos, os “caucheiros”, assim chamados porque extraíam látex de outra espécie de árvore, o caucho. Hoje nem seringueiros nem caucheiros existem mais.
Deixamos a baleeira “Euclides da Cunha” em Nova Aliança e partimos em duas voadeiras. Apesar do amplo predomínio de indígenas, encontramos ainda um ou outro ex-seringueiro, como Manuel Pereira de Freitas, 67 anos, um filho de cearenses que se estabeleceu em Santa Rosa há cerca de 30 anos. Até 1995 ele cortou seringa, e sobre o fim da extração ele não tem dúvidas: “Foi ruim. Isso acabou com nosso estado.” Segundo ele, a agricultura dá menos dinheiro, apesar dos vinte bois que mostra com orgulho. Aposentado do Funrural, ele tem cinco filhos, mas três foram morar em cidades. Seu Manuel diz que sempre se deu bem com peruanos, mas não com os índios, que “roubam galinhas e caçam jacarés com tingui” (tipo de veneno vegetal).
Em outra comunidade, Santa Helena, encontramos José Antônio Cunha da Costa, 59 anos, 30 como seringueiro. Este é o local onde Euclides viu um cemitério com lápide peruana que se referia a “assassinados por brasileiros”. Não encontramos a lápide, apenas um pequeno cemitério de brasileiros. Seu José tem doze filhos vivos, três dos quais morando em cidades. Um deles é professor da vila, embora tenha parado na quarta série. Ao contrário de Manuel, seu José não tem saudades da borracha. “Não quero nem sonhar. Deus me defenda!”
Nossa próxima parada, depois de Novo Marinho, é na fronteiriça Santa Rosa do Purus, cidade de 4 mil habitantes que tem 53% de indígenas; o vice-prefeito e três dos nove vereadores são kaxinawás. Um dos vereadores é Edmar Domingos Kaxinawá, nome indígena Yubê, de 38 anos, que usa um colete dado por um “parente” (índio) peruano e uma tiara de padrão geométrico preta e branca. Ele tem oito filhos e sua mulher recebe R$ 120 do Bolsa Família. Como vereador, ele recebe R$ 1.800, mas diz que vai propor aumento porque o prefeito e o vice ganham “bem mais”. A sessão de 12 de março foi a primeira da Câmara no ano.
Na cidade é comum que as crianças repitam três ou quatro vezes a mesma série, e não há aula do 5º ano em diante, embora haja unidade da Universidade Federal do Acre. O prefeito, Zé Brasil, diz que a cidade tem baixa criminalidade, apesar do assassinato recente de um fazendeiro, e aponta como maior problema a questão de saúde entre os índios do Purus. Verminoses são as doenças mais comuns; a malária foi praticamente erradicada, mas agora a dengue começa a ameaçar; e a mortalidade infantil ainda é muito alta.
Depois de dormir na pequena pousada à beira do rio – sem água quente, mas pelo menos com lençóis limpos –, saímos para o Peru. São 6 horas a 40 km/h até a primeira cidade, Puerto Esperanza; durante mais de metade da viagem, tomamos chuva, um toró de pingos grossos e gelados que caem num ângulo de 45 graus. Chegamos a Esperanza desesperançados. O pequeno porto estava tomado por peruanos serrando troncos de madeira. As ruas, sem pedras nem tijolos, estavam enlameadas; o veículo que nos levou até a única e anti-higiênica pousada, um mototáxi ao estilo vietnamita, só não caía pela perícia do piloto. Era início da noite, mas a iluminação das ruas é restrita ao horário das 19h30 às 22h30.
Na manhã seguinte, tivemos a companhia do prefeito, Emilio Bardalos, da aldeia San Martín, para ir até nosso ponto final, a forquilha do Purus com o rio Curanja, onde Euclides e os peruanos lavraram acordo sobre a demarcação. Foram mais duas horas de viagem, também sob chuva, o que deixou ainda mais claro o heroísmo da expedição capitaneada há 104 anos pelo escritor, que a esta altura já tinha malária e tomou um caldo de macaco para se fortificar. A reduzida equipe de Euclides ainda seguiu algumas semanas acima, até a foz do Cavaljani, perto do bosque onde hoje está reconhecida a nascente do Purus. Pioneiro nas letras, Euclides também o foi na geografia.
O futuro da floresta
“O Purus é um enjeitado”, escreveu Euclides da Cunha em À Margem da História. “Precisamos incorporá-lo ao nosso progresso, do qual ele será, ao cabo, um dos maiores fatores, porque é pelo seu leito desmedido em fora que se traça, nestes dias, uma das mais arrojadas linhas da nossa expansão histórica.” O progresso, para o escritor, consistia em construir uma rodovia, a Transacreana, uma ferrovia e melhoramentos ao longo do rio como portos, pontes e varadouros (atalhos por terra entre os rios e igarapés). Consistia, acima de tudo, em desenvolver o comércio da borracha dando condições de trabalho dignas aos seringueiros, além de cultivos agrícolas.
Se voltasse hoje, Euclides não veria nada do que sonhou. O clima de abandono, de “colonização à gandaia”, de ocupação ao estilo nômade, paralisada no tempo quanto ao aspecto econômico, prossegue. É uma região com IDH muito baixo, em função da mortalidade infantil, do analfabetismo e de outros problemas sociais. Os seringais desapareceram. Há, é verdade, duas pequenas cidades no Alto Purus, Manoel Urbano e Santa Rosa do Purus, e uma ponte será em breve erguida na altura de Paysandu. O governo chega com programas assistenciais, e a maioria das crianças está nas escolas, ainda que mal saibam ir além da escrita do próprio nome. Mas Euclides certamente imaginava outro futuro.
Engenheiro, positivista e republicano, ele tinha a noção de progresso que sua geração e sua formação exaltavam. Hoje essa noção tem mudado, em grande parte por causa da questão ambiental. Isso, porém, não garante melhores condições de vida para dezenas de milhares de habitantes que vivem na floresta ou à beira dos rios. De onde pode vir o desenvolvimento sustentável da região? No zoneamento econômico-ecológico do Acre, há áreas para exploração da seringa – e até já existe fábrica de preservativos em Xapuri –, outras para produção de castanhas, manejo de madeira certificada, pecuária, piscicultura e fruticultura. Todas dependem de uma infraestrutura maior, apesar de avanços recentes. E na região do Alto Purus o que existe são reservas naturais, como a que sobe pelo rio Chandless, e zonas de ocupação indígena. Cerca de metade do território do Acre é hoje área de proteção ambiental.
Para alguns especialistas, a alternativa para esses locais será dada pela pesquisa. “Isto deveria ser um grande laboratório”, diz o biólogo Evandro Ferreira, professor da Universidade Federal do Acre, em Rio Branco. Ele diz que o próprio Euclides fez contribuições científicas em sua expedição, principalmente a de concluir que o leito do Purus é variável, com grandes alterações do curso – que formam “lagos”, ou braços de rio temporariamente fechados – e da profundidade, de acordo com as cheias e secas. “É um leito encavado, que no ‘verão’ (de abril a setembro) pode baixar dois metros por dia”, explica. “Isso cria enormes bancos de areia, além dos galhos e troncos que descem pela correnteza.” Ferreira lembra também que o Acre é um estado sem pedra, o que dificulta ainda mais a locomoção.
Ele conta que há várias espécies de flora desconhecidas ou pouco divulgadas, inclusive de comestíveis como o amendoim. Cita também a taboca, um bambu com espinhos que poderia ter uso em mobiliário ou produção de papel; a palmeira jarina, com uma semente que já vem sendo aplicada na confecção de bijuterias; e a andiroba, que dá um óleo com potencial para ser convertido em biodiesel. A variedade de frutas inclui cupuaçu, graviola, cajarana, umbu, até mesmo melancia e banana. “Infelizmente, em alguns lugares eles preferem cultivar plantas exóticas, como manga e jaca.”
Na fauna não é diferente. Outro professor, Moisés Barbosa de Souza, diz que há dezenas de espécies, sobretudo de anfíbios e répteis, que nem sequer foram catalogadas. Um exemplo é o jacaré-açu, que pode chegar a 5 metros de comprimento, e que tem como ancestral o dinossauro Purussaurus brasiliensis, cujo fóssil foi encontrado no Acre (Euclides chegou a escrever que não existiriam fósseis). Souza destaca a variedade de peixes do Purus, como os saborosos matrinxã e tambaqui.
Alimentos, remédios e cosméticos, enfim, existem ali, em estado potencial. O padre Paolino, que utiliza folhas e cipós para fazer chás terapêuticos em suas missões pelo rio, resume: “Não conhecemos nem 5% do que a Amazônia tem.” Euclides concordaria de imediato.
Fonte: O Estadão
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